quinta-feira, 3 de abril de 2014

NÃO TENHAS MEDO DE SER FELIZ


 

Carla tem medo de adormecer. E se tudo isto que lhe está a acontecer não passar de um simples sonho? Se assim for, ela não quer adormecer para depois acordar numa realidade em que o Armando não tenha sido vitimado por um atentado.
Carla receia que isso possa acontecer pois aprecia esta realidade mais do que outra qualquer. Os seus dias têm sido infelizes e muito conturbados, mas esta madrugada devolveu-lhe a esperança.
O Armando está morto! As aleatórias leis do universo resolveram aplicar-lhe um dos mais severos castigos e acabaram com a sua vida. O cosmos não aprecia gente que não sabe reconhecer as suas leis.
Ainda bem que tudo terminou, pois Carla encontrava-se a meio caminho da loucura. Ainda bem que um buraco negro passou bem perto do alarve e o engoliu de vez e para sempre.
- É importante que eu consiga resistir ao cansaço e não me deixe adormecer. Não posso dormir, não agora. Quero ter a certeza absoluta que o que hoje aconteceu é a mais pura das verdades. Só assim poderei tentar voltar a ser quem eu era antes de o conhecer.

O escritor tem a obra praticamente concluída.
Helen acaba de tocar a sua extraordinária criação.
Os dedos velozes bailaram pelas teclas do instrumento.
As suas mãos dão ordem ao tempo para se movimentar. O universo manteve-o suspenso ao longo da brilhante interpretação da pianista irlandesa.
A chuva está de regresso, começou a cair no instante em que o tempo voltou.
Rui está sem palavras. Perante uma obra assim é impossível encontrar adjetivos. A melodia provoca sentimentos e sensações que nenhum poema será capaz de descrever.
Helen está feliz, está muito feliz.
Não é todos os dias que alguém consegue fazer parar o tempo para que o universo possa apreciar, com a devida atenção e respeito, uma verdadeira obra prima.
- Every time we say goodbye I die a little . Every time we say goodbye I wonder why a little . Why the gods above me who must be in the know . Think so little of me they allow you to go… but now, my love, you are here with me and that’s all that matters.

A vida no interior deste gigantesco buraco negro nem sempre é trágica, ou violenta, ou confusa, ou feroz. Por vezes ela consegue surpreender-nos com momentos de pura magia e de uma extrema felicidade.

terça-feira, 25 de março de 2014

QUERO SER UM DESENHO ANIMADO



O Rodrigo está melhor. Deixou de ter febre e já nem parece o mesmo menino que acordou esta manhã. Um dias sem aulas e com a mãe a tomar conta dele, somado a uma sessão dos seus desenhos animados favoritos, deram-lhe logo um outro ânimo.
- O pai perguntou por ti, Rodrigo. Estava a ficar preocupada porque ele nunca mais atendia o telemóvel. Disse-lhe que estavas melhor e que passaste a tarde toda a ver esses bonecos amalucados de que tu tanto gostas.
O menino sorri. Está-lhe a saber mesmo bem este dia passado na companhia da mãe, mas é pena o pai ter de estar a trabalhar. Seria bom se eles pudessem estar juntos neste dia, ou estarem sempre juntos todos os dias.
. Mãe, não achas que seria “bué da fixe” se o pai não estivesse a trabalhar e pudesse estar aqui em casa connosco a comer bolachas e a ver desenhos animados? Porque é que ele tem de estar sempre a trabalhar? Deve ser tão chato ser adulto, mãe. Eu não quero ser adulto, não quero crescer! Isso de ser gente crescida é coisa muito complicada. Prefiro ter de estudar de quando em vez, prefiro jogar à bola com os meus colegas, ver os desenhos animados e ir às festas de anos dos meus amigos e das minhas primas. Quero ser como o Bart Simpson, ou como a Lisa. Eles nunca crescem e nos desenhos animados quase ninguém fica velho ou doente e é raro haver mortos ou feridos. É tudo a brincar e é sempre tão divertido, mãe, muito mais divertido do que a vida de um adulto. Eu não quero ser adulto, isso é mesmo a última coisa que eu quero na vida!
Rita já só tomou atenção à parte final do discurso do filho. Onde terá ele ido buscar estas ideias? Terá sido a febre alta desta manhã a responsável pelos desabafos ajuizados do Rodrigo?
- Olha que tens razão. Eu não me importava mesmo nada de poder passar o resto do dia a ver filmes ou a fazer as coisas de que mais gosto. Não ter responsabilidades, nem de tomar conta de ti. Assim não tinha passado a manhã inteirinha num centro de saúde cheio de meninos febris e engripados, nem teria de trabalhar nem teria nada com que me preocupar. Seria uma autêntica maravilha.

segunda-feira, 24 de março de 2014

COMO FUNCIONA O UNIVERSO?


- Nunca fugi dos meus problemas, mas a verdade é que deixei de acreditar naquilo que escrevo. É difícil manter uma qualidade constante quando se trata da nobre arte da escrita. Se o Daniel não me tivesse ajudado, tudo seria bem pior. Foi ele quem me acordou da letargia que tomava conta de mim, foi ele quem me ajudou a escutar. Os dias têm sido implacáveis. Disse ao Lopes que terminaria a obra durante o próximo mês, disse-lhe que escreveria um pouco, todos os dias. O livro está pronto pois todos os livros e todas as histórias já se encontram concluídas. A Pietá de Miguel Ângelo estava concluída, mas encontrava-se presa num imenso bloco de mármore até que o escultor a soltou. A obra existia na prodigiosa imaginação do grande mestre, que com ela tinha sonhado. Foi o artista quem a libertou, para todo o sempre, daquela fria prisão onde a estátua se encontrava. Essa etapa entre o antes e o depois é muito dolorosa, é complexa e tremendamente agitada. É solitária como a própria existência mas quando se faz luz, nada se lhe pode comparar. O final do processo criativo que dá origem à obra gera um misto de felicidade e de tristeza. Quando fica concluída, o artista alegra-se e rejubila, contudo fica vazio e sente-se abandonado. O Lopes já me perdoou tantos atrasos, bem merece a rápida conclusão do meu trabalho. Falta pouco, falta mesmo muito pouco. A obra está concluída mas este é ainda um tempo e um espaço em que lhe dou corpo e conteúdo, em que a moldo e faço crescer. Dentro em breve o Lopes estará de sorriso no rosto com o meu livro nas mãos.
- Rui, what are you doing? Close the window and come inside. I want to show you something.
A noite chegou à cidade. O invisível deixou a cidade.
Helen chama o escritor para lhe dizer o que ele já adivinhou.
- I have finished my piano concerto! Look, this is the last page of my work. I wrote it twice because I want to give it to you. I hope you like it, my love.
A irlandesa oferece-lhe a última página da sua nova sinfonia, sentada ao piano  tal como veio ao mundo. Desenhou as notas finais naquelas cinco linhas paralelas, intercaladas por iguais espaços em branco, abstratos signos, notas prodigiosas, uma ímpar melodia.
Com o escritor ao seu lado, dá início ao recital. Pela primeira vez a bela pianista irlandesa toca na íntegra, e de memória, a obra que acaba de finalizar.


Zé Paulo tem uma visão muito particular do universo e do seu funcionamento. Nada do que já leu ou estudou acerca do assunto o deixou minimamente satisfeito. Poucas luzes foram assim acrescentadas às suas incompreendidas teorias. O irmão Rogério é o único a quem ele as tentou explicar, com pouco ou nenhum sucesso.
É virtualmente impossível conseguir provar os seus complicados pensamentos acerca da matéria em causa. Zé Paulo conseguiu, por uma só vez, prender a atenção do irmão durante um quarto-de-hora de uma sua conferência, mas daí em diante o semblante de Rogério começou a dar mostras de um grande ceticismo, primeiro, e de um extremo cansaço, depois, até que atingiu o ponto de saturação.
- Para lá com isso, Zé Paulo! Deixei de te entender à dez minutos atrás! As tuas teorias são ultra complexas, para mim não fazem sentido nenhum. Passaste os últimos três anos tão obcecado na tentativa de encontrar significados para coisas mais próprias de filmes de ficção científica, que acabaste por te desligar do mundo real. Tu vives literalmente no mundo da lua, meu irmão! Para ti deixaram de existir épocas festivas, fins-de-semana, feriados, almoços ou jantares de família, e até as idas ao teatro! Logo tu que tanto gostavas de assistir a uma boa peça. Quando foi a última vez que saíste para ir ao teatro? Vá, diz-me lá qual foi a última peça a que assististe?
Zé Paulo parou de discursar. Teve pena não ter dado conta que aquele não era o momento acertado para lhe explicar as mais complexas teorias acerca do funcionamento do universo. Foi imprudente e descuidado pois não queria obter aquela reação do Rogério.
- Desculpa se causei este ruído no funcionamento dos nossos universos. Escutei mal o burburinho das estrelas, devia ter sido mais sensato. Queres um café ou preferes chá? Uma bebida quente faz milagres e ajuda a apaziguar a ira.
Rogério sorriu. O irmão é quase sempre assim, imprevisível, e é também por isso que o adora mais do que a qualquer outra pessoa neste mundo
- Pode ser um café, mano, bem forte como de costume.

quinta-feira, 20 de março de 2014

O INFINITO É COISA COM PRINCÍPIO MEIO E FIM


A obra atravessa o espaço como um cometa, vislumbra outros astros iguais a si enquanto viaja.
O Lopes é capaz de se zangar quando Rui lhe disser que apesar de andar mais concentrado e de ter sido capaz de escrever todos os dias, a obra está longe de chegar ao fim. Mas este facto deixou de preocupar o escritor.
Mais dia, menos dia, os cientistas conseguirão provar que o universo nasceu e desde então não tem parado de crescer. Ficará provada a existência de um início, e se o universo nasceu, então seguramente terá um fim. O infinito é coisa com princípio, meio e fim, por isso também nós somos infinitos como o universo onde nadamos. Isso é reconfortante.
O que verdadeiramente importa é sermos capazes de escrever as histórias que escutamos.
- É isso que tu tentas fazer, Rui? Escrever as histórias que vais escutando. Eu próprio te contei um pouco da minha história. O que vais fazer com ela? Vais acrescentar palavras à tua obra? É isso que pretendes fazer? Claro que sim, é mesmo isso que vais fazer. Se parares de escrever morres mais depressa. Segura-te às palavras das tuas histórias, mesmo que elas não tenham nexo. Não pares de escrever, Rui, não te deixes abater pela constante falta de inspiração, como gostas de lhe chamar. A tua pianista ama-te, és um homem de sorte! A tua solidão acabou. O mundo deixou de ser igual ao que era no início da tua obra. Eu e todas as personagens da história estamos bem melhor agora. A tua cidade é mais feliz do que aquelas que te dei a conhecer, e todas são verdadeiras porque existem, ou já aconteceram. A obra terá de ser capaz de explicar estas evidências. Tudo está relacionado e nada acontece por acaso. A minha tarefa está praticamente concluída, eu nada mais te posso mostrar pois assim me comunicaram. Está quase na hora de regressar a casa. Estou com saudades desse lugar que nunca conheci. Quem sabe se desta vez me será facultada uma vida com um pouco mais de cor. Talvez possa encontrar a minha pianista e o meu mundo ganhe uma luz incomparável. Talvez. Se quiseres conta um pouco da minha história nessa tua obra, amigo escritor. Conta as histórias dos lugares para onde te transportei, conta como eles te transformaram. Escreve acerca das nossas conversas e discussões, escreve, mas apenas se quiseres.
Este é um dia bom, é um dia tão bom como outro qualquer.
Daniel acena um adeus, ao longe, do outro lado da avenida, sentado à janela da sala do escritor.
Rui vê o seu amigo a desaparecer muito lentamente, tal como uma imagem cinematográfica que desvanece.